Agora que o céu
se abre na minha mente como um espanador que boceja carícias e promessas
imperceptíveis, preciso levantar a lápide que me serviu de cama e fugir dessa
letargia incómoda que me trouxe exaurida e iluminou os meus olhos com
escuridão. É ainda o meu instinto de sobrevivência que impera? Acho que sim…
eu, a lutadora cobarde das horas mortas que se sente heroína quando as palavras
me tornam capaz de vencer todas as batalhas. Inútil e triste é a minha pobre
sina, mas tenho que me debater porque ainda não é a hora de desistir… Acho que
preciso urgentemente renascer e recriar-me. Apanhar a aurora, com os olhos bem
abertos e sem lágrimas como tanto aprecio. Vendo-a, extasiada, afastando-se
lentamente do enlace ainda quente da noite. Preciso sim… oh, como preciso de
acreditar que esse milagre intraduzível me possibilitará erguer das cinzas
fumegantes onde caí. Arrastar com a ajuda do meu anjo da guarda, as pedras do
meu castelo desmoronado por um tornado repentino, que me deixaram soterrada até
aos ossos. Preciso aprender de novo as leis básicas da sobrevivência. E se a
minha memória estiver definitivamente vulnerável? O que farei? Terei um vento
calmo à minha espera a insinuar-se através do teu perfume que me guia? Ou terei
o afago distante dos teus olhos de alecrim a dizer-me que as nossas almas serão
eternamente incorruptíveis? Estou em estado de choque, meu Deus, e sinto tanto
medo! Tento despir-me sem forças do barro negro que me transfigurou durante
todo este tempo. Deus… Meus Deus… Conseguirei?- Serei capaz? Neste momento só
quero olhar sem medo os olhos lânguidos e asquerosos daquele morcego branco que
me fazia ter pesadelos horripilantes. Acordar febril e sobressalta como uma
menina que nunca teve mãe. Aquela monstruosidade albina que teimava em desfigurar
a noite dos meus dias, poisado nos meus ombros. Mordiscando-os a sorrir por
dentro. Gretando-os, numa violação silenciosamente cínica. Hoje eu sei que
somente a fixidez dos meus olhos apavorados foi alargando as brechas da janela
de betão que por vezes aparecia pintada no bolor das paredes sujas onde vivi
enclausurada com correntes de vidro lascado. Eu e esse monstro albino com asas
de penas, mordendo o silêncio com gritarias que me sugeriam que esse seria o
meu verdadeiro anjo da guarda. Era nesses breves momentos de falta de lucidez
ou de pura loucura que me apercebia que o sol estreito e frio ia teimosamente
escorregando na minha direcção como se quisesse abraçar o meu medo. Eis porque
me interrogo: - Precisarei de escavar o mais profundo de mim mesma para me
reencontrar? Serei louca quando idealizo e vivo realidades inarráveis? Ou
estarei consciente que o que vejo ou sinto é a única realidade que sustenta a
minha existência? Sinto-me muitas vezes filha de alguém cuja alma ainda
deambula pelos desertos de conchas e algas que existem no oceano onde morreste
numa vida passada para me salvar. É como se a tua voz viesse das profundezas
numa espécie de furacão que me empurra para o outro lado do oceano onde as
areias são mais brancas e as ondas menos traiçoeiras. Salvaste-me para te
perder? Mas então que sentido dá isso às nossas vidas? Tudo quanto me rodeia,
agora… se torna ainda mais incompreensível e tenebroso. A sensibilidade que me
rasga por dentro e simultaneamente me veste de tudo quanto há de transcendente
e belo é um rastilho do nada que vai sustentando tudo aquilo em que vou
acreditando. Há alguma razoabilidade nessa descrição paranóica? Sou o que sinto
ou aquilo que me obrigam a representar para que seja mais consentânea minha
vivência com aqueles que me rodeiam? Cada vez mais desprezo o mundo, as
verdades impostas, os catálogos com regras que só existem para baralhar os
espíritos mais abertos e que por mais que fraquejam em determinados momentos
não se vendem ao silêncio cúmplice daqueles que querem parecer mais idóneos e
mais tranquilos. Desde que me conheço que me mato para renascer perante os
olhos dos crocodilos com a fórmula ideal que me fará ser a espada rachada,
nesta guerra de interesses e de imoralidades aceites. Desprezo-me e enalteço-me
com a mesma veemência. Sentir o que sinto é aceitável ou é a confirmação da
minha falta de lucidez e compreensão da realidade e desta minha vida? Muitas
vezes faço-o só por uma questão de sobrevivência mental e isso é o que mais me
choca e aterroriza. Resta-me algumas forças no entanto para chicotear a minha
teimosia e transformá-la nesta deprimente coragem de lacrau encurralado que
cercado, luta pelo simples instinto de sobrevivência. Enquanto vou esperneando
e movimentando os braços numa ânsia desconforme de me sentir viva. Fazendo-o
como quem é vítima de uma convulsão gigantesca, vai-me ficando a sensação
agradável que levito por aí sem rumo. Sem alma, sem emoções, sem órgãos vitais
a tornarem visível esta decadente indiferença que se apodera dos meus ossos e
floresce por cima da pele como um cacto perdido num deserto hostil. É uma
espécie de sinal da cruz, para que eu me ajoelhe e reze por todos os pecados
que cometi ao procurar manter a minha autenticidade indomesticável. Não sei se
estou destinada a continuar a viver neste trapézio de papel sujo pelas palavras
que me saem da alma como arrotos descomunais e desagradáveis. Para quê escrever
se essas palavras já nada dizem ou traduzem? Talvez eu saiba que no momento em
que deixar de o fazer, morrerei por asfixia, como um peixe fora de água. Espero
o sinal divino, nada mais… Talvez porque pressinta que este é o meu destino.
Que o tenho que cumprir até cair ao comprido sem uma réstia de oxigénio que me
devolva a esta vida incompreensível que me faz sentir mártir num paraíso de
víboras e lobos. Resta-me, será? Resta-me… atravessar de peito aberto, os teus
olhos fechados, o teu coração mirrado borbulhando em carne viva por entre estas
linhas tortas que me abafam e revelam todos os sofismas que minam a saúde dos
meus pulmões tão negros como a dor que sinto em mim. Não é que isto seja um
lamento, não! Quando já nada espero eu sou uma espécie de formiga. Aguardo
resignada que me pisem e me esmaguem. Tudo é preferível a uma morte lenta, como
se os segundos pingassem os minutos com uma preguiça de uma tartaruga coxa.
Vóny Ferreira______________2013
M.Ivone
B.S.Ferreira
1 comentário:
Uma dor tão fina que corta em minusculos pedacinho cada fibra do ser...Porem a beleza não só encanta,como enternece ao sentir quão suave é o teu tocar nas letras, quão bailarina sois no mover das palavras que afagam-te sopros de um : talvez...
Ler-te é indescritível Querida Vony.
Em Ti meu abraço com saudades, mas sempre tenho-te aqui no regaço das minhas lembranças.
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